domingo, 19 de fevereiro de 2017

“Amílcar Cabral não era sonhador, era um político”

Combatente da Liberdade, Manuel dos Santos, o Comandante Manecas, está nos dois momentos que ficam para a história da guerra colonial: o assalto ao quartel de Guiledje e a introdução dos mísseis Strella no cenário da luta pela independência. No pós independência, acaba por ficar na Guiné-Bissau, onde chegou a ser Ministro das Finanças e embaixador em Angola. De passagem por Cabo Verde, aceitou dar uma entrevista ao Expresso das Ilhas. E foi uma conversa sem tabus.

Expresso das Ilhas — Era estudante de engenharia em Lisboa quando resolve abandonar a universidade e entrar na luta pela libertação. Quais foram as suas motivações?

Manecas Santos — Uma era a situação colonial que se vivia em Cabo Verde, que era terrível. Aparentemente, aqui, já se começou a esquecer como era Cabo verde há sessenta ou setenta anos, quando se morria ainda de fome. Eu era miúdo, mas assisti à última fome que houve em Cabo Verde, vivia então em Santo Antão. E, de facto, há coisas que não se esquecem. Ver gente morta na estrada por não ter nada para comer. Por outro lado, o PAIGC logo depois da sua fundação enviou um dos militantes mais antigos, o Abílio Duarte, para agitar as águas do ponto de vista político em Cabo Verde e ele foi parar ao Liceu de São Vicente, onde eu estudava. É do Abílio que eu ouço, tinha 15 ou 16 anos, as primeiras coisas sobre nacionalismo, política, etc. Depois, fui para Lisboa estudar, o meu irmão também já lá estava e ele estava muito ligado aos meios estudantis de esquerda o que, obviamente, teve alguma influência sobre mim. Continuámos a encontrar-nos com outros jovens da mesma geração e fundámos em 62/63 o primeiro comité do PAIGC em Lisboa e tínhamos contacto com o secretariado-geral em Conakry através de uma pessoa que estudava em Paris na altura, o António St. Aubyn. Portanto, a motivação foi esta, não só a situação colonial que se vivia em Cabo Verde, mas também todo um trabalho político que terá começado com a ida do Abílio Duarte para Cabo Verde.

E não havia o sentimento de medo? Afinal, estava-se a arriscar a própria vida quando se embarcava numa aventura dessas.
Nós éramos jovens. Eu tinha 22 anos quando saí de Lisboa, nessa altura o medo não é muito (risos).

Na Guiné-Bissau tem um contacto próximo com Amílcar Cabral…
Não tão próximo. Eu era soldado, encontrei-me com ele várias vezes, obviamente. Agora, o que lhe posso dizer é que continuo a pensar que sou um discípulo de Amílcar.

Amílcar Cabral que é considerado um humanista, por certos historiadores, mas também capaz de ter posições duras, como no seguimento do congresso de Cassacá.
Não acho que haja contradições. O Amílcar não teve posições assim tão duras. Basta lembrar que o Congresso de Cassacá não condenou ninguém à morte.

Mas, posteriormente acabaram por ser mortos vários comandantes.
Nem posteriormente. O único indivíduo que foi morto era um dos comandantes de guerrilha balanta, porque resistiu à prisão. De resto, o congresso de Cassacá não condenou ninguém à morte e Cabral era formalmente e publicamente contra isso.

Há documentos que falam na morte de vários comandantes e não apenas de um.
É falso. Há muita gente interessada em fazer da história do PAIGC um mistério muito grande, com uns indivíduos maquiavélicos, é tudo mentira.

O sucesso do PAIGC na Guiné-Bissau pode ser explicado pelos vectores: Cabral, saúde e educação para a população, a ajuda militar cubana e soviética e o apoio logístico da Guiné-Conakry?
E a ajuda da Suécia, não te esqueças. Nos anos finais da guerra. Ajuda que não era em armamento, mas era uma ajuda humanitária extremamente importante.

Saúde e educação para a população foi uma estratégia para mostrar o que o PAIGC poderia dar?
Acho que não foi estratégia, era um imperativo. Em 1963 começaram a aparecer as primeiras áreas que já não eram administradas pelo poder colonial e essas áreas tinham de ser administradas e tinham necessidades. É claro que essas necessidades, principalmente de educação e saúde, foram, eu diria, sabiamente orientadas por Cabral no sentido de um desenvolvimento maior das pessoas. E não foi só a saúde e a educação, foi a justiça, foi a polícia, foram os tribunais populares, enfim, toda uma série de medidas que se tomaram e que eram importantes para administrar as áreas libertadas. E ainda dando atenção a uma matéria que está hoje na moda e que o PAIGC já falava há 60 anos que é o problema do género. As aldeias eram administradas por um comité eleito e nesse comité havia obrigatoriamente duas mulheres em cinco pessoas. Penso que actualmente a Guiné-Bissau tem a mulher mais livre desta costa de África, não é por acaso, vem daí.

Mesmo com todas estas confusões políticas?
Mesmo com estas confusões todas. A Guiné-Bissau não tem só coisas negativas, tem muitas positivas, algumas delas resultantes da luta e algum dia a Guiné-Bissau vai tirar proveito disso. Não estou pessimista. Vinte anos na história de um país, não é nada. Ultrapassa-se.

Voltando à Guiné no período da guerra. Quando Spínola chega e adopta a chamada ‘guerra psicológica’ principalmente batendo na tecla da divisão étnica entre cabo-verdianos e guineenses, essa tensão sentia-se de facto? Ele descobriu uma brecha ou esta foi criada artificialmente?
Acho que as duas coisas. Efectivamente o General Spínola quando chega à Guiné trata de fazer uma anti-guerrilha moderna, algo que não acontecia com os seus predecessores. Até diria que os predecessores dele foram quase nossos aliados, tantas asneiras fizeram. O Spínola faz uma anti-guerrilha moderna que obviamente inclui a acção social. Foi nessa altura que a população da Guiné-Bissau, aquela que estava junto das autoridades portuguesas, começou a auferir de melhores cuidados de saúde, melhores escolas, etc. Era evidente que isso servia para se opor aquilo que o PAIGC fazia. É dos livros. As coisas entre guineenses e cabo-verdianos devem ser relativizadas. Vou dar-lhe o meu exemplo, estive em muitas unidades onde eu era o único não guineense e não preto e nunca tive o mínimo problema. Os problemas existiam mais em Conakry onde as pessoas estavam confrontadas com condições não muito fáceis de vida e cada um a querer alguma coisa. Quando há competição essas coisas vêm sempre ao de cima, até agora. Mas, acho que não é de dar muito significado. As pessoas falam muito nas contradições entre cabo-verdianos e guineenses, que terão estado na origem do assassinato de Amílcar Cabral, é tudo conversa para boi dormir, como diz o brasileiro.

Acha que isso não teve qualquer reflexo na morte de Amílcar Cabral?
Nada. Que os tipos que estavam a fazer o complot contra Amílcar Cabral e que acabaram por matá-lo e que queriam dar cabo do partido utilizaram isso, sim utilizaram. Mas, não creio que tenham tido grande sucesso com isso. Aliás, depois do assassinato de Cabral vê-se qual foi o desenvolvimento da luta.

Vamos lá chegar, mas na altura chegaram a aparecer no Voz di Povo relatos de perseguições brutais aos cabo-verdianos, no período que se seguiu ao assassinato de Cabral.
Onde?

No Voz di Povo, aqui em Cabo Verde.
Pergunto, quem foi morto ou espancado?

Estou a basear-me nas fontes da época.
Por acaso, eu não estava lá, quando Cabral é assassinado eu estava na União Soviética. Mas, há aqui muita gente que estava lá.

Acha que também se usou isso para fazer propaganda cá?
Eventualmente. Mas, isso é algo que é mais histórias da carochinha que outra coisa.

Voltamos então ao cenário de guerra. É nos pós assassinato de Cabral que se dá o salto tecnológico na Guiné-Bissau…
O segundo salto. O primeiro foi a artilharia, depois foi as antiaéreas.

Com os mísseis Strella. É o momento de viragem?
Não diria viragem, diria progresso de uma mudança muito grande na nossa capacidade ofensiva e na negativa da capacidade ofensiva da tropa colonial.

O que representaram, no fundo, os Strella?
Representaram o acabar com os aviões e os helicópteros, essenciais na guerra de guerrilha.

Há analistas que defendem também que os Strella ajudaram a diminuir as tensões entre cabo-verdianos e guineenses porque para operar os mísseis era necessário pessoal mais bem formado e com conhecimentos, por exemplo, de matemática.
(risos) Havia um cabo-verdiano a operar em vinte e quatro, que era eu. Os outros eram todos guineenses.

Diz-se que foi Manuel dos Santos quem abateu o tenente-coronel Almeida Brito, a primeira vítima dos Strella.
Não fui eu. Quem o abateu chama-se Fodé Cassamá, guineense de Boé.

Cheguei a ler que se teria encontrado com a viúva do tenente-coronel Almeida Brito.
Não é verdade. Houve uma senhora, viúva de um oficial piloto que morreu na Guiné, que foi à Guiné porque pensou que o marido estivesse preso, mas ele tinha morrido e obviamente estive com ela e lamentei ter de lhe dizer que efectivamente o marido tinha morrido.

Em Lisboa, em 2010, durante o lançamento do livro A Última Missão [do coronel Moura Calheiros, que esteve na batalha de Guidaje] disse que era chegada a altura de falar desse período…
Sem problemas e sem complexos.

E acha que estamos a conseguir fazê-lo?
Não.

Porquê?
Há quem queira doirar as pílulas. Quando vejo aquele programa do Furtado na RTP [A Guerra, documentário sobre a guerra colonial da autoria e realização de Joaquim Furtado] às vezes riu-me. Até das contradições do próprio programa. O que se há-de fazer?

Mas há um doirar de pílula dos dois lados ou só de um?
Acho que é dos dois lados, porque falamos muito pouco disso. Para o programa do Furtado, por exemplo, fizeram-me uma entrevista de uma hora e depois passaram um minuto. Acho que estão a prestar um mau serviço, porque a guerra colonial faz parte da memória de todos nós e eu acho que os portugueses têm o direito de saber o que aquilo custou. E não custou pouco, sobretudo na Guiné.

Estamos a falar de todos os custos? Monetários e humanos?
Sim, sim. E ainda hoje há gente com o chamado stress pós-traumático, que não conseguiu a recuperação total. Portanto, acho que poderiam fazer melhor.

Do lado guineense e cabo-verdiano não falta também contar a história?
Falta, claro. Há muito pouca coisa escrita por guineenses e cabo-verdianos que participaram na luta na Guiné. Talvez seja por isso que se tente branquear tanta coisa.

E idolatrar outras?
Acho que do nosso lado nunca houve tanta tentativa de idolatrar gente. A não ser por algumas pessoas Amílcar Cabral. Mas, mesmo isso, se Amílcar Cabral estivesse vivo não ficaria contente.

Em 1973 fazia parte do Conselho Superior de Luta. Hoje não faz parte da lista dos comandantes aqui em Cabo Verde, que estavam quase todos no Conselho Superior de Luta. Acha que devia estar nessa lista?
Acho que sim. Mas, isso é uma decisão que cabe ao governo de Cabo Verde.

Porque acha que ficou de fora?
Porque não estava cá. Não creio que haja outras razões.

Aliás, em 73 é já conhecido na Guiné como comandante Manecas e está à frente do ataque ao quartel de Guileje. Foi o ‘momento Dien Bien Phu’ de Portugal [batalha travada entre o Việt Minh e o corpo expedicionário francês no Extremo Oriente, de 13 de Março a 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da Guerra da Indochina]?
Não houve nada disso na Guiné. Houve uma acção extremamente importante [Guileje] contra o exército colonial, que já estava enfraquecido pela falta de aviões. Quando enfrentámos a tropa especial portuguesa estávamos em vantagem porque era o nosso território e eles não tinham a aviação a apoiar, não tinham hipótese. O Almeida Bruno [comandava as tropas portuguesas na altura] disse uma data de asneiras, só que um oficial dele, um comando africano…

O Marcelino da Mata?
Não, era outro. Escreveu um livro também onde contradiz tudo o que o Almeida Bruno contou.

Por falar em Marcelino da Mata. Ele era tão bom soldado como ele próprio diz?
O Marcelino da Mata é um bandido, um criminoso, mais nada do que isso. As orelhas que ele tinha não eram de militares, eram de civis que ele matava [há descrições de soldados portugueses que Marcelino da Mata usava orelhas cortadas como troféu. Outros dizem que isso é mentira].

Não deixa de ser o militar português mais condecorado de sempre.
Pelas más razões.

O Marcelino da Mata afirmou que o PAIGC tinha morto a mulher dele e que fazia tudo por vingança.
Tenho as minhas dúvidas. Não creio que o PAIGC tenha feito coisas dessas. Não fazia. Pode acontecer que num ataque morra gente, morram civis, isso existe em todas as guerras. Agora, ir deliberadamente matar a família do Marcelino da Mata que, por sinal, é primo do primeiro Primeiro-Ministro da Guiné, acho duvidoso. Ele lá sabe as razões que o levaram a fazer aquelas coisas. Mas, não deixo de dizer que o Marcelino da Mata é uma vergonha para o exército português. Há poucos dias estava a falar dessa questão das tropas africanas com o comandante Pedro Pires e ele tem uma opinião com a qual estou inteiramente de acordo: foi o exército colonial que causou o problema dos comandos e da tropa portuguesa e que está na base do que eles sofreram depois da independência.

Mas o PAIGC garantiu que eles não sofreriam nada.
O PAIGC não garantiu coisa nenhuma.

Há jornais da época que dizem o contrário.
Isso são os jornais. Documento não há nenhum.

Eles foram convencidos a entregar as armas.
Eles entregavam as armas a bem ou a mal. Eu lembro-me até que na zona onde estava houve uma espécie de rebelião das milícias com os comandos africanos e um dia chega lá o comandante português todo alterado porque os comandos tinham recusado entregar as armas eu disse-lhe: ‘tire os portugueses daí e a gente vai buscar as armas’ e entregaram-nas imediatamente. Sabiam o que a casa gastava. Não estou a contar vantagem, era mesmo assim.

O assassinato dos comandos africanos não podia ter sido evitado?
Podia. Já agora, vou-lhe contar uma história que me foi contada pelo Nino Vieira numa altura em que ele não tinha interesse algum em branquear Luís Cabral. Presumo que seja verdadeira. Como sabe, Luís Cabral tinha boas relações com o Ramalho Eanes [oficial e ex-Presidente da República português], numa das passagens de Luís Cabral por Lisboa, o general Eanes pede-lhe que liberte os oficiais de comandos que estavam em Bissau, que lhe desse documentos para viajarem para Portugal. Luís Cabral concordou. Quando chega a Bissau chama gente do exército para lhes dizer para fazerem isso e o chefe da segurança diz-lhe que eles já estavam todos mortos. (pausa) Mas, a primeira culpa é do exército português que os deixou lá. Eles eram militares portugueses. Porque evacuaram todos e eles não? Porque não eram brancos.

Alguns foram evacuados.
Só o Marcelino da Mata. Mais nenhum.

As fontes portuguesas contam outra versão.
Não foram evacuados. Fugiram. O único que foi evacuado foi o Marcelino da Mata e havia razões mais do que suficientes para o fazerem.

Do que eu li, houve comandos que recusaram ir porque tinham várias mulheres e só deixavam levar uma.
Isso é treta.

O 25 de Abril começa na Guiné. Sentiram que era o início do fim do regime colonial?
Acho que houve alguns oficiais portugueses na Guiné – o Otelo [Saraiva de Carvalho], o Salgueiro Maia e outros – os homens que fizeram o 25 de Abril, que entenderam que aquilo não tinha solução. Ou por outra, a solução tinha de ser uma coisa negociada. O Spínola foi ter com o Marcello Caetano [o último Presidente do Conselho do Estado Novo], porque era suficientemente inteligente para saber que aquilo não tinha solução, e o Marcello recusa-se a negociar seja o que for. Obviamente, não há nenhum exército que queira perder uma guerra. Não sei se viu os documentários feito pelo José Manuel Saraiva, um sobre Guileje e outro sobre Medina do Bué…

Nunca vi.
Ele põe o general Monge a falar e ele diz uma coisa engraçada é que nessa altura não eram as tropas do PAIGC que estavam a construir defesas anti-tanque, era a tropa portuguesa.

Ou seja, estavam a passar para uma guerra defensiva.
Como é óbvio. Sem aviões o que podiam fazer? Toda a filosofia das tropas especiais numa guerra anti-guerrilha é baseada na existência de uma aviação eficiente, o que não era o caso.

Mas continuava a haver uma discrepância grande de forças no terreno: o PAIGC com pouco mais de 7 mil homens e o exército português com cerca de 35 mil.
Pois é, mas dos quais 90 por cento estavam acantonados em quartéis e não tinham operacionalidade nenhuma, ao passo que os nossos soldados eram todos operacionais. E havia uma diferença qualitativa: a tropa portuguesa, do serviço militar obrigatório, chegavam à Guiné e dois anos depois iam embora. Quando eles começavam a estar minimamente preparados para combater iam-se embora, enquanto nós tínhamos soldados com 6, 7 e 8 anos de guerra às costas, gente com uma experiência enorme de combate. Eram duas realidades diferentes. E nós não tínhamos de ocupar terreno nenhum.

De qualquer forma, quando se dá o 25 de Abril e terminam as hostilidades, pode-se dizer que havia cansaço das duas partes?
Havia. Nós todos queríamos acabar com aquilo. Mas, não tenho dúvidas também que a tropa portuguesa, por razões óbvias, estava mais cansada.

Ainda em 74 os primeiros combatentes cabo-verdianos começam a chegar ao arquipélago. Em 75 dá-se a independência e a democracia chega 15 anos depois. A transição podia ter acontecido mais cedo?
Teríamos de definir uma série de coisas e uma delas é se a democracia que foi importada da Europa serve ou não. Aqui em Cabo Verde, muito provavelmente serve. Na Guiné, acho que tem muitos pontos escuros. Não podemos esquecer que a Guiné é uma sociedade onde o tribalismo ainda estava presente. Uma sociedade onde a informação é escassa. Onde o índice de analfabetismo é alto. As pessoas vão votar porquê e para quê?

Porquê e para quê?
Essa é a pergunta que eu ponho. O Kumba foi eleito [Kumba Yalá, presidente da Guiné-Bissau de 2000 a 2003, quando foi deposto por um golpe militar], as pessoas não se perguntam porquê? Como é que um tipo daqueles chega e é eleito Presidente da República? É uma das interrogações que as pessoas podem legitimamente pôr. E a verdade é que a introdução de um sistema multipartidário contribuiu para um recrudescimento do tribalismo na Guiné.

Porque os partidos foram procurar apoios junto das tribos?
Obviamente. Isso não é novidade. O próprio Cabral disse que indivíduos destribalizados quando procuram o poder lembram-se que são balantas, ou fulas, para irem buscar as solidariedades.

Já que cita Cabral, eu perguntei sobre a democracia cabo-verdiana porque foi o mesmo Cabral quem disse que o homem africano devia ser livre de decidir por si próprio.
Deixe-me dizer-lhe outra coisa. Um dos problemas disto tudo é que a Europa e a América pensam que o que é bom para eles é bom para toda a gente. Ora, Amílcar Cabral era um indivíduo que dava uma importância enorme à participação das pessoas e essa é uma das pedras de toque da democracia – directa ou indirecta. (pausa) Não penso que fizemos as melhores coisas depois da independência e penso que podíamos ter feito muito melhor, mas considerar que a democracia representativa é uma panaceia que vem resolver todos os problemas… Basta ver os resultados.

Cabral é que disse que devemos andar pelos próprios pés.
De acordo com as nossas próprias realidades.

No livro de Humberto Cardoso “O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança” levanta-se a dúvida se Manuel dos Santos tinha sido persuadido a ficar na Guiné ou se tinha sido impedido de regressar a Cabo Verde. O que aconteceu?
Nem uma coisa nem outra. Era um partido com as características que todos conhecem e quando termina a luta armada, no quadro da unidade Guiné/Cabo Verde, o partido ordenou-me que ficasse na Guiné, nem me perguntou a minha opinião. E eu fiquei. Não fiquei zangado, devo dizer, mas era assim. Fui a Angola também.

Onde participou na guerra civil ao lado do MPLA.
Não fui obrigado também, mas fui. É preciso ajuizar o comportamento das pessoas pela época em que elas viveram e tiveram determinado comportamento. Devo dizer que me sinto bem na Guiné. Estou como peixe na água. Sou o último que tem o estatuto das duas nacionalidades originárias, na Guiné sou guineense, em Cabo Verde sou cabo-verdiano. Nasci em Cabo Verde, mas tenho direito à nacionalidade originária por ter sido combatente e entendo que não devo perder essa qualidade.

A 14 de Novembro de 1980 dá-se o Golpe de Estado de Nino Vieira. Na altura, os autores do golpe preferiram falar em Movimento de Reajustamento, exactamente o que tinha sido dito em Cassacá. Foi uma manobra inteligente?
Há tempos estava a falar com um italiano e ele disse-me que os militares mais inteligentes do mundo são os guineenses: dão golpes de estado mas nunca assumem o poder e nunca dizem que foi um golpe de estado, dizem que foi outra coisa qualquer (risos).

Mas, quando tentam encobrir o golpe sob a cortina do reajustamento isto foi para quem? Para a comunidade internacional ou para o próprio PAIGC?
Acho que foi para todos. O PAIGC esteve na corda bamba, nessa altura, na Guiné.

E houve trocas de cartas bastante violentas entre Aristides Pereira e Nino Vieira.
Pois, mas o problema não está aí, está no interior. Houve um hiato de uns meses em que o PAIGC esteve… Mas, com a realização do Congresso voltou à normalidade em termos partidários.

Há analistas políticos guineenses que dizem que essa data significou a segunda morte de Cabral.
Não tenho essa opinião. Amílcar Cabral já foi morto uma data de vezes.

Na altura tornou-se também pública a insatisfação que havia em relação a Cabo Verde e aos cabo-verdianos, tanto mais que alguns regressam ao arquipélago. Você nunca regressou. Acha que era mais respeitado porque tinha sido um comandante de terreno.
Não foi por causa disso.

Pergunto-lhe isso porque o Osvaldo Lopes da Silva falou nos ‘comandantes de retaguarda’.
Ele era um deles (risos). Uns dias depois do 14 de Novembro eu estava cá. Vim falar com Pedro Pires e com o Presidente Aristides Pereira. Aristides Pereira já morreu, mas Pedro Pires pode confirmar isso.

De qualquer forma, acaba por regressar à Guiné.
Continuei a fazer parte do governo, nunca saí. Ok, eu sou respeitado na Guiné. Acha isso uma coisa má?

Não estou a fazer juízos de valor, estava apenas a tentar saber porque é que alguns vieram embora e você ficou.
Vou-lhe dizer outra coisa, o Nino, o João Bernardo Vieira, continuou a ter boas relações com todos os combatentes que estavam aqui em Cabo Verde. E quando o PAICV perdeu o poder até ajudou alguns.

Quer explicar melhor isso?
Não, não quero. Mas é a verdade. Sabe que Guiné e Cabo Verde têm uma ligação histórica e étnica muito grande. Você era capaz de imaginar que o Nino Vieira era de ascendência cabo-verdiana? A mãe dele chamava-se Florença de Pina Araújo, descendente de gente da ilha do Fogo, e o pai dele era dos Vieiras daqui de São Domingos e agora? E há outros, muitos mais.

Da parte do PAICV não houve nenhuma pressão sobre si porque ficou na Guiné?
Podia ter havido. Penso que se o camarada Aristides tivesse ido à Guiné naquela altura seria capaz de modificar muitas coisas. Mas, não foi. Se fosse Cabral tinha ido. Na hora.

Bem, o Nino Vieira era ligeiramente ameaçador nas suas cartas, não dava grandes garantias.
(silêncio) Eu sei do que estou a falar. Nino Vieira e Aristides Pereira continuaram a ter relações estreitas, sou testemunha disso, até da ajuda que Nino Vieira deu a Aristides Pereira quando o PAICV perdeu as eleições.

Os jornais cabo-verdianos, jornais oficiais do partido, da altura mostram outra coisa.
Espero que você, enquanto jornalista, não acredite em tudo o que dizem os jornais (risos).

Sabe certamente que se chegou a escrever nos jornais cabo-verdianos que Manuel dos Santos era a flor na lapela de Nino Vieira.
(risos) O que é que eu hei-de fazer? Éramos amigos sim e fomos amigos até ele morrer. Isto pode escrever, que eu assino por baixo. Mas, não mais do que isso. Nunca estivemos juntos em negócios. Éramos amigos e somente isso.

Em 91 Cabo Verde abre-se para a democracia. Na Guiné-Bissau a realidade tem sido outra, golpes, contra golpes, os próprios Estados Unidos da América consideraram a Guiné um narco-estado. Para que serviu a guerra de libertação afinal?
Serviu para mudar uma série de coisas na Guiné. Como estava a dizer-lhe há bocado, a Guiné não tem só coisas negativas. Há mais para além dos títulos e há pessoas.

Há hoje uma nova fase na Guiné?
Estamos a assistir à tomada do poder pelo actual Primeiro-Ministro, que é um homem que não pode ser acusado de ter estado na luta de libertação nacional, porque era muito pequeno, mas que é um individuo que viu que há muitas coisas boas na história da Guiné e que é preciso tirar proveito delas.

Os militares não voltarão às ruas?
Creio que não. Eles também já descobriram que o crime não compensa. Este Primeiro-Ministro merece ser ajudado.

De qualquer maneira, o sonho de Amílcar Cabral – de uma Guiné independente, democrática e desenvolvida – ainda está por cumprir 40 anos depois.
Amílcar Cabral não era sonhador, era um político avisado. Queria que a Guiné-Bissau fosse diferente daquilo que é hoje, não tenho dúvidas nenhumas, e penso que um dia vai ser. Cabral e aquilo que ele disse ainda está bem vivo e pode ser utilizado. Cabral não era um profeta, seria o primeiro a dizer que não era isso, mas as suas análises políticas ainda são actuais em muitos domínios.

E seria o primeiro a dizer que falhou em algumas situações?
Não creio. Assim como não considero que eu falhei. Se a direcção central for a correcta, mesmo que haja desvios, um dia chega-se lá. E é isso que Cabral representa: um dia chega-se lá.

Qual é o legado de Cabral?
Não espera que lhe responda a isso em dois minutos pois não?

Acha que o cabralismo é hoje recordado somente em certas datas?
O cabralismo é uma treta! Não acredito nessas histórias de cabralismos e outros ismos.

Há muitos camaradas que considerariam isso uma heresia.

Esses são os primeiros a violar as regras (risos). Aqueles que batem no peito? São os primeiros a violar as regras. Acho que Cabral é um homem cujo pensamento merece ser estudado, merece ser tido em conta. As análises dele, eu penso, ainda não foram ultrapassadas, pelo menos em África, naquilo que diz respeito à vida política dos países africanos. Cabral teve uma frase em que ele diz que a grande fraqueza dos movimentos políticos africanos era a sua falta de ideologia, ou seja, a sua falta de objectivos claros e concretos que condicionassem a sua actuação. Resumindo, o que ele queria dizer é que eles falavam uma série de tretas e depois faziam o que lhes apetecia. Não estamos muito longe disso. Lí aqui»

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