sábado, 10 de fevereiro de 2018

AS MULHERES NA IGREJA E NA SOCIEDADE


Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias

1- Devemos a vida a uma mulher, à mãe. Claro que também ao pai, mas a nossa mãe poderia ter-nos rejeitado e não nasceríamos. Se alguém se sacrificou e nos amou e ama é a mãe. Dá, pois, que pensar o modo como as mulheres são tratadas ao longo da história e, nessa história, também as religiões são acusadas, pois, com excepção do taoísmo, tendem para a misoginia. Ficam aí alguns textos universais significativos. "A mulher deve adorar o homem como a um deus" (Zaratustra). Um texto antigo budista diz que "a filha deve obedecer ao pai; a esposa, ao marido; por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho". "A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem falhado" (Aristóteles). "Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher" (Bíblia, Ben Sira). "Dou-te graças, Senhor, por não ter nascido mulher" (oração dos judeus ortodoxos). "As mulheres estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não permito à mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio" (São João Crisóstomo). "A ordem justa só se dá quando o homem manda e a mulher obedece" (Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma mulher com a menstruação. Tudo o que toca fica impuro" (São Jerónimo). "No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal nascida, porque o poder activo da semente masculina tende a produzir um ser perfeito parecido, do sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher provém de uma falta do poder activo " (Santo Tomás de Aquino). "Os homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu a uns sobre outros" (Alcorão, que permite desposar duas, três ou quatro mulheres e também bater nas que se rebelem).

2- Razões para esta situação? As primeiras figurações da divindade foram femininas, mas, depois, com a sedentarização, seguiu-se, também no domínio religioso, o modelo predominantemente patriarcal, com as mulheres no lar e sob a tutela dos homens. Haverá inconscientemente por parte dos homens inveja do prazer feminino, e da vida quem percebe são as mulheres. Embora elas sejam mais resistentes, os homens têm mais força física. As mulheres estavam sujeitas à impureza ritual e eram consideradas passivas também na geração, pois o óvulo feminino só foi descoberto em 1827; dada esta passividade, a mulher não poderia ser imagem de Deus e, embora Deus esteja para lá da determinação sexual, nunca se poderia recitar o Credo, dizendo: "Creio em Deus, Mãe todo-poderosa, criadora dos céus e da terra." Ela não poderia pregar. Foi um escândalo quando o Papa João Paulo I disse que Deus também é Mãe. Mas o Papa Francisco disse recentemente que "Deus é Pai e é Mãe". E há outra razão: quem escreveu os textos eram homens, a educação era para os rapazes...

3- E Jesus? Escandalosamente, tinha discípulos e discípulas. Segundo o Evangelho de São Lucas, "acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres", ensinava tanto homens como mulheres, ficando em casa, por exemplo, de Marta e Maria. Deixou-se tocar e acarinhar publicamente por uma prostituta, louvando o seu gesto de o perfumar e perdoou-lhe os pecados. Seguiram-no até à morte, como se lê no Evangelho segundo São Mateus: "Junto à cruz havia muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e José, e a mãe dos filhos de Zebedeu." Contra a Lei, defendeu a adúltera e curou a filha de uma estrangeira, a cananeia, bem como a mulher com um fluxo de sangue, que o tocou. Contra os preceitos da época, que impediam normalmente as mulheres de se dirigir aos homens em público, foi à samaritana - tinha tudo contra ela: outro povo, herética, ia no sexto marido... - que Jesus se revelou como o Messias. As primeiras testemunhas da ressurreição, da fé em que Jesus, na morte, não caiu no nada, mas está vivo em Deus para sempre, foram mulheres, a começar por Maria Madalena, chamada por Rábano Mauro e Tomás de Aquino a "Apóstola dos Apóstolos".

4- São Paulo era misógino? Há textos temíveis: "As mulheres estejam caladas nas assembleias, porque não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submissas" (Primeira Carta aos Coríntios). "A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem, mas que se mantenha em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, deixando-se seduzir, incorreu na transgressão" (Primeira Carta a Timóteo). Hoje, os exegetas sabem que estes textos não pertencem a São Paulo, são posteriores e interpolações indevidas. Como poderiam ser de São Paulo, que está na base da tomada de consciência da igual dignidade de todos, ao proclamar, na Carta ao Gálatas: "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus"? E não chamou "apóstola" a Júnia?

5- Teólogos eminentes, como Karl Rahner, Yves Congar, o cardeal Martini, o cardeal José Policarpo, o cardeal Karl Lehmann, mostraram que não há nenhuma razão teológica que se oponha à ordenação sacerdotal de mulheres. Para lá de tudo: Deus não se pode opor aos direitos humanos.

6- Entretanto, revolução maior na história a caminho - as francesas votaram pela primeira vez em 1945 e as suíças só em 1971 - é a emancipação feminina e o acesso das mulheres ao poder, com consequências à vista: transformação das relações sociais, na família, na educação, no domínio sexual, no trabalho... Elemento decisivo: a educação. Depois, como escreve J.-L. Servan--Schreiber, "o politicamente correcto tende a minimizar as diferenças entre os sexos; mas a biologia resiste." Portanto, igualdade na diferença. Mas igualdade, sem discriminação.

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