...
quando o servilismo for destronado pela
competência na guerra de acesso a cargos públicos, quando os novos portadores
de esperança se impuserem, quando deixarmos de nos matar uns aos outros só
porque não somos capazes de nos entendermos, poderemos, em nome da sagrada
esperança, exigir que, definitivamente, “cantem
o mar e a terra que a nossa luta fecundou”.
“E
enquanto não podemos nos entender
porque
só um lado de nós cresceu,
temos
de nos matar uns aos outros.”
–
Luandino Vieira,
in
“Nós, os do Makulusu”
Não há nenhum povo que tenha feito mais
sacrifícios para recuperar a sua soberania e dignidade do que o povo guineense.
Não conheço nenhum povo que tenha abraçado de uma forma tão decidida e
espontânea os ideais de liberdade e independência como o povo guineense. Não
consigo imaginar nenhum povo que esteja hoje tão constrangido na expressão da
sua dignidade e com a esperança num futuro melhor tão debilitada como o povo
guineense.
Abdulai Silá (var. Silla, Sila), (Catió, 1 de Abril de 1958), é um engenheiro, economista, investigador social e escritor guineense.Filho de Aissatu Baldé e Aliu Silá, Silá nasceu e cresceu em Catió, uma pequena cidade no sul da Guiné-Bissau, onde frequentou a escola primária. Em 1970 mudou-se para Bissau a fim de freqüentar o Liceu Honório Barreto. De 1979 a 85, frequentou a Universidade Técnica de Dresden (Alemanha), onde graduou-se em Engenharia Electrotécnica. De 1986 até à data, participou com sucesso em vários cursos de formação nos EUA e em outros lugares sobre redes de computadores e gestão de LAN, rede de Cisco, segurança na Internet, entre outros. Além da paixão e compromisso para com o desenvolvimento do TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação), acumulou, desde sempre, o interesse pela literatura e escrita.Abdulai Silá é Co-Fundador e CEO da Eguitel Comunicações. É também co-gestor de Sitec (Silá Technologies), uma empresa de informática que criou em 1987 e gerida em conjunto com o seu irmão. Sob a liderança de Silá, Eguitel e Sitec têm vindo a desempenhar um papel pioneiro no desenvolvimento e difusão das Tecnologias da Informação e Comunicação na Guiné-Bissau, comprometendo várias iniciativas para tornar estas tecnologias acessíveis e de baixo custo em todo o país
A nossa Guiné transformou-se num
djongagu com o qual nenhum dos seus filhos parece saber/poder lidar. Mergulhada
numa crise cada dia mais profunda – e sem fim imediato à vista – o país tem o
presente envenenado, o futuro hipotecado e corre um risco sério de ver o
passado contrafeito. De desilusão em desilusão fomos ficando cada dia mais
longe daquilo que foi o sonho de emancipação que tanto marcou e empolgou a
minha geração.
Como foi isso possível? Como é que
conseguimos chegar tão depressa a esse nível de frustração colectiva tão
generalizada sem que houvesse alguém ou algo que nos interpelasse, que
sacudisse a nossa “consciência patriótica”, que nos levasse a erradicar de uma
vez por todas esse macbethiano djunda-djunda pelo poder que a todos tanto
entristece e empobrece? Com que magia fomos capazes de transformar, em menos de
uma geração, o nobre espírito da luta na famigerada política de the winner
takes all?
Será uma mera questão de amontondadi,
como insinuam os revoltados cantores de rap? Será porque, profundamente
compenetrados nas lutas intestinais pelo poder, nos rendemos à ideologia do
tafal-tafal? Ou será que foi simplesmente porque só um lado de nós cresceu?
“Das
ist zum kotzen”
Quando comecei a aprender a língua
alemã, do zero absoluto, num outono rico de eventos, tinha uma certeza
inquestionável: ia dominar aquela língua. Nem os sons de difícil pronúncia, nem
a complexa estrutura gramatical, nem tão pouco as exageradamente longas
palavras, iam impedir isso. De onde vinha tanta certeza?, pode-se perguntar
hoje, mas não naquele tempo. Cinco anos depois da proclamação da independência,
era o tempo em que vencer era a nossa sina. Era cidadão de uma orgulhosa ‘nação
africana forjada na luta’, onde todo o cidadão voluntariamente se predispunha a
dobrar o mundo ao meio, se assim o Partido ordenasse.
Era a oitava língua que estava aprendendo,
quatro das quais sem nunca ter tido a oportunidade de recorrer a um dicionário,
glossário, ou nada que se lhe parecesse, para descobrir o significado de uma
palavra nova. Em quatro ocasiões anteriores tinha-me desenrascado sempre
sozinho. Dei-me conta agora de que nunca dantes me tinha dado conta desse
facto!
O uso da palavra era arte. E como toda a
arte, ela tem uma finalidade: dar expressão aos nossos sentimentos. Visto nessa
perspectiva, o significado de uma palavra desconhecida engendrava sempre uma
componente de subjectivismo. Talvez por isso, o significado (ou significados)
não se perguntava, descobria-se. Perguntar era uma declaração de infertilidade
intelectual a que ninguém se atrevia a expor-se. O sentido da palavra
desconhecida estava assim sempre ao alcance da nossa imaginação.
Foi com esse espírito de liberdade e
criatividade no uso das palavras e expressões que encarei o aprendizado da
língua germânica e que me permitiu mais tarde ‘descobrir’ um significado
original de uma expressão que passou a ter um valor especial para mim: “das ist
zum kotzen”.
Quando, depois de uma experiência
laboratorial mal sucedida, ouvi a frase pela primeira vez, algo de
extraordinário aconteceu comigo: senti-me reconfortado. Não sabia o que
exactamente significava a expressão, mas tive a certeza absoluta que reflectia
aquilo que ocorrera instantes antes e o sentimento de fracasso que em mim
deixara. Lembro-me perfeitamente de ter repetido a frase, alto e bom som, bem
como do efeito paliativo que isso causara em mim. Era a magia que vinha da arte
de ‘koba mal’ na língua mandinga, conjugada com a vivacidade da língua balanta.
Mas tarde soube que não era exactamente
aquilo que imaginara, que aquela frase significava somente ‘isto é enjoativo’,
mas decidi ficar com o significado que inventara. Não encontrava em nenhuma das
minhas línguas maternas nada que exprimisse de uma forma tão fiel a sensação de
frustração, de revolta, de falhanço (tudo isso ao mesmo tempo), como esta
pequena frase. Por isso, perante esse permanente flagelo nesta minha Pátria
Amada, stressa-me tanto não ter que, também permanentemente, declarar: Das ist
zum kotzen!
A
vitória dos ideólogos do tafal-tafal
A situação que o país tem vivido
tornou-se uma verdadeira afronta para a quase totalidade dos guineenses,
exceptuando, obviamente, os novos guardiães da tabanca, que da anarquia têm
feito o seu principal trunfo quer para seu enriquecimento ilícito, quer para a
promoção da ideologia do tafal-tafal.
O país que nasceu com tudo para se
afirmar como uma nação de “Paz e Progresso” (está registado no Hino Nacional!),
transformou-se paulatinamente num extenso ‘kau di tchur’, onde o povo canta
chorando e chora cantando. Quem da minha geração seria capaz de imaginar que
depois da epopeia da libertação do colonialismo e quando tudo, finalmente,
prometia passar a ser pacífico e harmonioso, teríamos que assistir, pequenos e
impotentes, a tamanha catástrofe?
Excedendo as previsões mais
‘reaccionárias’ da época, e contrariando as aspirações mais elementares a uma
vida digna e condigna, o nosso sol desapareceu cedo demais (1980?) para não
mais voltar a arder… E entre intentonas
e inventonas aos bocados fomos
aprendendo a renunciar aos ideais. Ou a traí-los.
Perante a miséria generalizada que se
instalou – e como estratégia para se fazer face ao dilema da sobrevivência –
tentámos encontrar refúgio onde nunca nos imaginámos. Talvez por isso, a elite
política guineense desenvolveu novas habilidades e capacidades. Sem pejo nem
pudor, assumiu a mendiguice como um desígnio nacional, perdendo a noção do
ridículo e, ainda pior, a consciência de que, ontem como hoje, “por mais quente
que seja a água da fonte, ela não cozerá o teu arroz”.
Por isso assistimos ao florescer de
artefactos que minam os alicerces da identidade nacional com a maior
naturalidade. A fragmentação dos catalisadores da coesão social não nos aflige,
nem tão-pouco nos incomodam os recorrentes escândalos no sector da justiça ou o
iminente colapso do sistema educativo.Vergamo-nos. Sem honra nem glória…
Daí que quando os novos guardiães da
tabanca surgem nas suas vestes de aprendiz de feiticeiro, exuberantes e
fanfarrões, até fazem encolher o céu. E a terra, a nossa terra, humilhada e
desonrada, manifesta-se ao mundo em toda a sua imensa pequenez. Das ist (wirklich) zum kotzen!
“Some people feel the rain; others just get wet.”
Mas e agora? O que fazer perante tamanho
descalabro? Como (sobre) viver com/a tanto kasabi pessoal e colectivo sem
enlouquecer ou ter que renunciar aos ideais da juventude? É alimentar a onda ou
perseverar na busca dos fragmentos da paixão amputada?
Entre a resignação e o suicídio deve
haver certamente uma alternativa mais compatível com os nossos sonhos, mais
consentânea com o nosso sentido de dignidade.
Resignar-se é trair. É assumir-se como
‘lan di polon na bentu’, uma atitude que não se coaduna com o estatuto de
lambé. Quem um dia teve o privilégio de sonhar com uma nação a ‘renascer das
cinzas para se tornar no mais belo jardim do mundo’ não tem a opção de trair.
Tem é a obrigação de resgatar a capacidade de sonhar, de fazer ressuscitar a
crença na afirmação dos portadores de esperança, mesmo quando essa crença
aparente às vezes situar-se para além da utopia.
Utopia? Não, é possível fazer o nosso
sol arder de novo! Não, é possível recriar o país com que sonhámos! Não, é
possível livrarmo-nos do ciclo de lebsimenti sem companheiro, que tem feito com
que até politiqueiros falhados de outras paragens ambicionem aqui dar-nos
lições de boa convivência como se bestas fôssemos.
Como? Em nome da Pátria Amada podemos
voltar a ter o professor a estudar mais para ensinar melhor; podemos levar o
juiz a despir as vestes de gigolô e adquirir sentido de justiça; podemos
ambicionar ter uma classe intelectual ciente dos seus compromissos históricos e
não tão prostituída; podemos exigir que aqueles que do alto das suas posses
decidem sobre a política da energia sejam ao menos conhecedores da lei de Ohm;
podemos até recuperar Karache e fazê-la povoar só pelos ideólogos do
tafal-tafal e demais apóstolos da desgraça.
Em nome da dignidade, devemos, depois de
mais de quarenta anos de pleno exercício do direito à autodeterminação,
reclamar maturidade e deixar de ter imbecis a brincar de governantes; devemos,
após vinte anos de multipartidarismo estéril, exigir que os votos sejam doados
com base em programas de governação assumidos e não na sacrossanta
solidariedade étnica.
E assim, quando o servilismo e a
vassalagem forem destronados pela competência e mérito na guerra de acesso a
cargos públicos, quando os novos portadores de esperança se impuserem e virmos
erradicada a política de the winner takes all, quando crescermos – o suficiente
e de ambos os lados – e deixarmos de nos matar uns aos outros só porque não
somos capazes de nos entendermos, poderemos, em nome da sagrada esperança,
exigir que, definitivamente, “cantem o mar e a terra que a nossa luta
fecundou”.
Ecoando pelas lalas de Kubukaré e
florestas de Kobiana até se confundir com as quedas de Kussilintra, é essa
canção que redimirá toda a minha geração, libertando-me a mim desse trauma que
suscita a sensação que dá pela expressão ‘das ist zum kotzen’.
Utopia? Mera utopia? Pouco me importo,
pois na íntegra subscrevo a posição do escritor e matemático Georg Lichtenberg
em como "Ich weiß nicht, ob es besser wird, wenn es anders wird. Aber es muß anders werden, wenn es besser werden
soll"[1].
[1] Não sei se será melhor se for
diferente. Mas terá que ser diferente para ser melhor.
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